Mulheres em Pernambuco constroem rede solidária para proteção à vida e garantia da dignidade | Land Portal
Esse texto foi construído coletivamente por Gabriela Falcão, Mariana Vilarim e Patricia Chaves, foi revisado por Simone Santos e fotos de Espaço Feminista, Daniel Castelo e R. Henrique Cavalcanti. Ressaltamos que essas ações só foram realizadas pelo empenho de muitas mulheres, mas queremos nomear apenas algumas que representam esse grupo: Gigliola Silva, Sergiana Maria e Edisangela Marcolino (Bonito); Josefa Ferreira da Silva e Maria do Carmo Carvalho (Caruaru) e Maria de Fatima da Silva e Juliana Barbosa (Ponte do Maduro), Marilene Ferreira (Tracunhaém). Destaque para a dedicação de Maria Eduarda Ramalho.
 
A pandemia do novo coronavírus vem assolando os cinco continentes e quase todos os países apresentaram casos de contágio. Diante de economias paradas e de incertezas quanto ao futuro, mulheres de municípios de Pernambuco – estado do Nordeste brasileiro; construíram redes de solidariedade para se apoiarem com troca de alimentos e itens de proteção individual. As ações aconteceram entre os meses de maio e julho na capital Recife e nas cidades de Tracunhaém, na zona da mata, e Bonito e Caruaru que ficam no agreste do Estado, e foram apoiadas pela organização não governamental Espaço Feminista (EF).
 
No Brasil, a pandemia tem evidenciando as desigualdades sociais diante de um cenário em que 38 milhões de pessoas estão na informalidade e que não poderiam deixar de trabalhar um dia sequer. Nesse contexto, as mulheres negras são as ainda mais prejudicadas, pois segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), 47,8% estão no trabalho informal e fazem parte da maioria das trabalhadoras domésticas. 3,9 milhões de um contingente de 6,2 milhões, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2019). Não podemos deixar de citar que a primeira mulher a morrer vítima do Covid19 no estado do Rio de Janeiro, no dia 17 de março, foi a empregada Cleonice Gonçalves, de 63 anos, que se infectou dos patrões que haviam voltado de uma viagem a Europa, então epicentro do vírus, e não lhes informaram que estavam doente, tampouco foi garantido a ela o direito de ficar em casa. Também não podemos deixar de citar o exemplo de Mirtes Souza, a empregada doméstica que teve o seu filho Miguel Otávio, de 5 anos, morto no dia 02 de junho, após ser deixado sozinho no elevador de um edifício de luxo no Recife. Ela também não teve o direito de fazer a quarentena em casa para cuidar do filho que estava sem aula, uma vez que o hotelzinho que ele frequentava e que a mãe pagava com o salário de doméstica estava fechado por conta da pandemia.
 
Os dados oficiais mais recentes, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, destacam que a taxa de desocupação saltou de 10,3%, percentual da primeira semana de maio, para 13,1%, na terceira semana de junho (IBGE, 2020). É um cenário alarmante e que tende a piorar diante da recessão econômica agravada pela pandemia e pela falta de ações econômicas eficazes pelos governos. O próprio auxílio emergencial, aprovado depois de muita negociação, gera filas gigantes e aglomeração entre a população que precisa ir às agências da Caixa Econômica, o que contraria todas as orientações de saúde pública. Vimos, afinal, que a pandemia não atinge a toda a sociedade da mesma forma. Há as pessoas que podem ficar em casa e manter o distanciamento social e há aquelas que, além de residirem em moradias inapropriadas para o isolamento, ainda têm um direito humano básico negado: o direito à água e ao saneamento.
 
“Aqui é muito difícil, aqui nem um banheiro eu não tenho… Eu preciso de produtos de limpeza, a gente também não tem. Ficam faltando as coisas para a gente cuidar… A água também, que nós cozinhamos, não é boa…” – Maria José, Bonito/PE
 
Em meio a esse contexto de tamanha desigualdade, a crise evidenciou também a urgência de se defender o Sistema Único de Saúde (SUS) como fundamental para preservação das vidas e pela justiça social no Brasil.
 
Ações de solidariedade: Diante disso, passado o momento inicial do impacto e vendo o caos que se instalava, era preciso agir rápido e de forma organizada e solidária. As dificuldades trazidas pela pandemia atingiram muitas companheiras que fazem parte do Espaço Feminista, entidade da sociedade civil, situada no Recife.
 
As mulheres que viviam tanto nas áreas urbanas quanto nas áreas rurais dos municípios de Recife, Tracunhaém, Bonito e Caruaru compartilharam nos espaços virtuais abertos pela entidade, como os grupos de Whatsapp, as adversidades que elas, suas famílias e suas comunidades estavam enfrentando desde o fechamento da economia, no mês de março. Somaram-se depoimentos que retratavam a escassez de alimentos e recursos materiais, a falta de acesso a máscaras e álcool em gel, dentre outros.
 
O impacto inicial veio das mulheres da comunidade de Ponte do Maduro, no Recife. Território em que a maior parte desenvolve atividades no setor de serviços e onde a doença se espalhou rapidamente com os primeiros casos de óbito registrados. Também ouvimos os relatos das mulheres de Tracunhaém que contavam da sua dificuldade de enfrentar a pandemia devido ao desaparecimento do comercio local e das feiras. Assim, as urbanas relatavam os problemas do avanço da doença e da dificuldade das famílias que não tinham o que comer. Do outro lado, as rurais não tinham dinheiro e iam perder a sua produção por falta de compradores. Imediatamente, vimos a necessidade de unir o urbano ao rural, uma das bandeiras do Espaço Feminista.
 
Iniciamos a campanha: Unindo o Urbano ao Rural para enfrentar a Covid-19. Através dela, conseguimos comprar a produção das produtoras rurais de Tracunhaém e iniciamos a distribuição às famílias mais vulneráveis das comunidades de Ponte do Maduro, no Recife. A campanha deu certo e atraiu a atenção de muitas pessoas e de profissionais e empresários. Foi sugerida a ideia de um sorteio e que as pessoas doariam ao Espaço Feminista e, em troca, receberiam um cupom para uma viagem à Ilha de Fernando de Noronha. Com a campanha, o EF arrecadou o dinheiro utilizado para pagar alimentos, cestas básicas e, também, toda a logística. Empresários se somaram a ação e começamos a receber muitas doações em produtos de higiene e de proteção. Apenas uma empresa doou 500 kg de álcool em gel. Depois, vieram muitos outros produtos e outras iniciativas.
 
“ nós estamos sobrevivendo de doações, né? Agora chegou essa doação que tá vindo de Bonito, pelo Espaço Feminista, né? Aí essa doação que veio para a gente foi muito importante.. A gente tá vivendo de solidariedade” (sic) Juliana, Ponte do Maduro/ Recife – PE
 
Mas, não era apenas comida que faltava. Também era necessário apoiar as mulheres a preencherem os formulários necessários para receberem os benefícios do governo, mas sem arriscar suas vidas e de suas famílias em filas intermináveis. Para isso, contamos e colocamos à disposição das mulheres todas as advogadas e advogados e preparamos requerimentos e orientações de como garantir esses benefícios e também garantir direitos. Mais do que proteger vidas e dignidade, era preciso proteger direitos.
 
As mulheres da Associação de Santa Terezinha, uma das quatro comunidades de Ponte do Maduro (localizada no bairro de Santo Amaro, no Recife) conseguiram quatro máquinas de costura e passaram a produzir máscaras. As máscaras eram distribuídas na comunidade e, a partir das doações de alimentos e de cestas básicas, elas passaram a produzir também para as mulheres de Bonito (urbanas e rurais) e também de Caruaru (distritos de Cacimba Cercada e de Jacaré de Gonçalves Ferreira).
 
Por sua vez, as agricultoras e assentadas pela reforma agrária de Bonito, e também de Camocim de São Felix passaram a doar parte de sua produção agrícola para atender as necessidades de quem tinha fome nos outros locais. Isso graças ao esforço, à generosidade e uma determinação inimaginável de mulheres lutadoras, forjadas na luta dos sem terra e na defesa da agricultura camponesa e solidária.
 
“ a gente perguntava pelos alimentos, os agricultores nos perguntavam que tipo de alimento… – macaxeira… – ah! Isso nós temos aqui… Aí eles pegam, trás para a gente com o maior amor, com o maior carinho, aquele alimento que eles produzem da terra, e chegar no Recife, e a gente ver a satisfação dos companheiros, a alegria que eles fizeram…” (sic) Gigliola, Bonito/PE
 
Agora, as mulheres estão pensando e se organizando para produzirem mais do que máscaras em Ponte do Maduro. Já em Caruaru (distrito de Cacimba Cercada) e em Bonito, elas estão iniciando um processo de criação de uma associação de moradoras dessas comunidades.
 
Dessas ações, o aprendizado é, sobretudo, da importância de fortalecer as redes de mulheres e isso se reflete no bem estar de suas famílias e comunidades. Além disso, é fundamental a defesa da agricultura familiar, que responde à reprodução social das famílias e que se coloca como uma forma de resistência à agricultura de mercado.
 
Ainda não vencemos a luta contra o vírus, mas vencemos uma etapa importantíssima para todas nós. Aprendemos que nosso fortalecimento está na nossa capacidade de resistir e de criar relações pautadas por uma outra lógica, que é a do compartilhamento, do apoio mútuo e do respeito às diferenças. O vírus não nos venceu, mas vencemos preconceitos, superamos dificuldades e encontramos apoio onde não esperávamos.
 
Nesse percurso, perdemos algumas companheiras e, também em nome delas, resistiremos e vamos seguir desconstruindo preconceitos e construindo redes e trocando conhecimento, afeto e reconhecimento.
 
 
Foto: Espaço Feminista
Pessoas em situação de rua – Centro do Recife.  Foto: Espaço Feminista
 
Foto: Henrique Cavalcanti – Espaço Feminista
Moradora da Comunidade de Jacaré, Caruaru/PE. Foto: Henrique Cavalcanti – Espaço Feminista
 
Foto: Espaço Feminista
Dona Severina – Assentamento Francisco Julião, Bonito/PE.  Foto: Espaço Feminista
 
Foto: Espaço Feminista
Costureiras da comunidade Ponte do Maduro. Recife/PE.  Foto: Espaço Feminista
 
Foto: Daniel Castelo Branco
Comunidades de Ponte do Maduro – distribuição de cestas básicas. Foto: Daniel Castelo Branco
 
Foto: Espaço Feminista
Maria José – Colônia, Bonito/PE. Foto: Espaço Feminista
 
Foto: Daniel Castelo Branco
Comunidades de Ponte do Maduro, Recife/PE.   Foto: Daniel Castelo Branco

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